O paciente na barriga da mãe

O paciente na barriga da mãe

Só muito recentemente os médicos começaram a realizar tratamentos e até cirurgias em fetos ainda no útero materno, conseguindo corrigir problemas antes do nascimento.

por Carla Leirner e Gisela Heymann

Foi-se o tempo em que, agarrada pelos pés, de ponta-cabeça, a criança travava o seu primeiro contato com um médico ao nascer no caso, o obstetra, responsável pelo parto. Hoje em dia. muito antes disso ela já se torna uma paciente, graças à Medicina Fetal, uma das áreas das ciências biológicas que mais recentemente se abriram para a atividade clínica. "Essa especialidade só se tornou viável porque, nas últimas décadas, surgiram vários recursos, como a ultrassonografia e a fibra ótica, que permitem visualizar com nitidez o interior do útero", explica o professor francês Fernand Daffos, do Instituto de Puericultura de Paris, considerado uma das maiores autoridades nesse novo campo da saúde.
 
"Ao enxergar o feto, a gente consegue fiscalizar o seu desenvolvimento. Não só diagnosticamos eventuais doenças, como até podemos tratá-las antes do parto." Não deixar para depois, na maioria das vezes, é uma questão de vida ou morte. A partir do segundo mês de gestação, ocorre um rito de passagem na barriga da mãe: o que era considerado um embrião se transforma em feto, porque todo o organismo já está basicamente formado, restando apenas se desenvolver. Ocorre que, se na fase embrionária algum órgão não foi moldado da maneira certa — uma má formação causada, por exemplo, pela ordem errada dos genes — o seu amadurecimento nunca se completará. Ou então ele prejudicará órgãos vizinhos Assim, uma obstrução na uretra do feto, o canal por onde sai a urina, provoca pressão tão grande nos rins, que eles terminam danificados. A criança nasceria com insuficiência renal grave, que só teria uma chance de cura: o transplante. Agora os especialistas em Medicina Fetal resolvem o problema desobstruindo a passagem da urina com a ajuda de um catéter. 

O grande campo de trabalho desses médicos, no entanto, são os exames de diagnóstico, com os quais eles flagram cerca de mil doenças hereditárias e um sem-número de malformações. "Quando não existe maneira de iniciar o tratamento no feto, então nos preocupamos em propiciar as melhores condições possíveis para o seu nascimento", explica Daffos. "Se sabemos de antemão que o recém-nascido deverá ser operado, podemos programar uma equipe de cirurgiões para ficar a postos na sala de parto." Nesse instante, os especialistas em fetos costumam trabalhar lado a lado com os Neonatologistas, pediatras cujos pacientes se situam na faixa etária entre 0 e 28 dias. A Medicina Fetal começou a engatinhar nos anos 60. Só na década seguinte surgiu a fetoscopia, o primeiro exame que permitiu visualizar o interior da cavidade amniótica — a bolsa repleta de liquido que abriga o feto —, com a introdução de uma microfonte luminosa pelo colo uterino. A príncipio, esse método não foi o que se pode chamar um sucesso: os riscos de aborto chegavam a 10%. Além de poder transmitir infecções, a agulha com a fonte luminosa, usada no exame, ameaçava machucar o feto, caso ele se mexesse. Ainda por cima, o útero da mulher grávida é um órgão complicadíssimo: muitas vezes, ao ser tocado, reage, contraindo-se em espasmos.
 
Por isso, teoricamente, todo exame invasivo no útero da grávida pode levar ao parto prematuro. Atualmente, com o auxílio de aparelhos monitores, os riscos de aborto desses exames caíram para 0,5 a 2% O professor Fernand Daffos é o responsável por um verdadeiro pulo do gato na área dos diagnósticos em fetos: há nove anos, ele desenvolveu a cordocentese, uma técnica que permite alcançar o cordão umbilical com uma agulha, guiada pela imagem precisa da ultrassonografia. Com ela colhem-se poucas gotas do sangue fetal, 2 a 3 mililitros, suficientes para descobrir eventuais infecções. "Até então, a grávida que pegasse rubéola ou toxoplasmose só tinha duas opções: abortar ou levar a gestação, até o final, angustiada por não saber se a criança fôra ou não comprometida pela doença". exemplifica o médico Eduardo lsfer, diretor do Centro de Diagnóstico Fetus, em São Paulo. "O exame, nesses casos, não deixa dúvidas. 

O curioso é que em 90% dos casos as mães não contaminam os filhos. Portanto, a cordocentese também acaba evitando muitos abortos programados de crianças absolutamente normais." Se a cordocentese possibilita tirar sangue do feto, parece lógico que a recíproca seja verdadeira. Ou seja, a técnica pode ser aplicada em tratamentos como o de fetos que possuem poucas plaquetas, células sangüíneas envolvidas no processo de coagulação. Para eles, as contrações do útero em trabalho de parto são ameaças de hemorragias fatais. Dai, o cordão umbilical passa a servir de portão de entrada para a agulha fina injetar plaquetas obtidas de um banco de doadores.

Outra aplicação da cordocentese é nas transfusões, que às vezes são o único remédio nos chamados casos de isomunização — a popular incompatibilidade de fatores Rh entre o sangue da mãe e o do filho. O sistema imunológico da mulher com fator Rh negativo fabrica anticorpos para atacar o sangue do feto com fator Rh positivo. Se nada for feito, a criança poderá morrer de anemia, ainda no ventre. Atualmente, porém, estima-se que 97% dos casos são resolvidos com transfusões pelo cordão umbilical. Desse modo, durante sua temporada uterina, o feto é mantido com sangue Rh negativo, amansando o sistema imunológico materno; mas, depois do nascimento, os médicos fazem outra transfusão para restituir ao bebê o sangue Rh positivo que seu organismo deverá produzir dali para a frente, uma vez que está geneticamente programado para isso. 

Antes do aparecimento da cordoncentese, há exatos 22 anos, o obstetra paulista Luiz Antonio Baulão já tentava realizar a primeira transfusão intra-útero. Tímido, falando sempre em voz baixa, esse professor da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, interior do Estado, trilhou o difícil caminho dos autodidatas. Hoje, ele coordena o centro da Medicina Fetal da universidade. Em 1972, Bailão e sua equipe ousaram realizar a primeira tentativa brasileira de operação a céu aberto —"a céu aberto" é como os médicos classificam as cirurgias em que o feto é retirado do útero. "Não deu certo, por falta de tecnologia adequada", conta. "Ao drenarmos o liquido amniótico, o volume do útero diminuiu e, depois, não voltou ao normal. Além disso, a manipulação desencadeou o trabalho de parto precoce.

" Atualmente, esse efeito indesejável é controlado com potentes relaxantes musculares, que roubam do útero a força para expulsar o feto. Passadas duas décadas, as cirurgias a céu aberto deixaram de ser quase impossíveis, embora continuem raras. "A incidência dos casos que podem ser corrigidos com essas operações é pequena e, por isso, elas terminam sendo pouco divulgadas", explica Bailão. Há três anos, médicos da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, realizaram pela primeira vez com sucesso a correção de um problema que atinge um em cada 5 mil recém-nascidos — uma hérnia no diafragma, o músculo que serve de fronteira entre o tórax e o abdome. O defeito pode ser descrito como um furo pelo qual os órgãos abdominais acabam passando; assim, invadem a caixa torácica e ocupam o espaço reservado para os pulmões crescerem. Os cirurgiões americanos conseguiram colocar cada órgão em seu devido lugar e, depois, fecharam o rombo no diafragma de um feto, que tinha apenas 24 semanas.
 
O paciente, Blake Schultz, nasceu sete semanas mais tarde, perfeito e saudável, sem nenhuma cicatriz. Essa é uma característica das cirurgias pré-natais: a reposição de tecidos no feto é extremamente veloz e, por isso, apaga as marcas do bisturi. Apesar do êxito dessa e de outras experiências, as cirurgias a céu aberto ainda provocam polêmica. "Os médicos ainda não dominam esse tipo de operação, que pode comprometer outras gravidezes. O útero costuma ficar danificado", adverte o professor Yves Dumez, do Hospital Cochin, em Paris, um dos maiores especialistas do mundo em Medicina Fetal. Na sua opinião, a operação a céu aberto só deve ser cogitada quando o feto não tem, de fato, nenhuma outra chance de sobrevivência. Por enquanto, franceses e americanos são os únicos que realizaram essa proeza cirúrgica. "Nos Estados Unidos o aborto só pode ser feito, legalmente, nas primeiras semanas da gestação", observa Dumez, em seu consultório, onde se pode ver uma dúzia de cachimbos amontoados numa prateleira, entre dezenas de saquinhos de fumo. 

"Talvez, quando a grávida americana descobre que o filho apresenta problemas sérios, ela não tenha outra saída a não ser a cirurgia. Mas na França, o aborto é permitido em qualquer período da gravidez e daí, freqüentemente, as mulheres francesas preferirem tentar uma nova gestação, em vez de se arriscar numa operação delicada." Por sua vez, as manipulações que usam e abusam de agulhas e catéteres para interferir no futuro bebê sem abrir o útero já são realizadas em diversos países, incluindo o Brasil. Chamadas de cirurgias a céu fechado, elas por enquanto têm três aplicações específicas. Uma delas, com sucesso garantido, é justamente a desobstrução da uretra. A segunda é nos casos de cistos pulmonares: "São pequenas bolsas de água que atrapalham o crescimento dos pulmões", descreve Bailão, da USP. "Por isso, a cada vinte dias, nós drenamos esse liquido, que sempre volta a se formar. Na trigésima sexta semana de gestação, quando os pulmões já estão maduros, fazemos uma cesariana. 

O recém-nascido, então, é operado para a retirada do cisto." A última aplicação das cirurgias a céu fechado causa muita discussão — a correção da hidrocefalia, popularmente chamada água na cabeça. O líquido pressiona o cérebro do feto, provocando lesões irreversíveis. O único brasileiro que arriscou a drenagem do líquido foi o professor Antonio Fernandes Moron, da Escola Paulista de Medicina: "Dos cinco casos que operei, apenas um foi mal sucedido", comemora. "Atualmente, as quatro crianças estão sendo seguidas por uma equipe multiprofissional e estão apresentando crescimento e desenvolvimento adequado." Recentemente, Moron e sua equipe conseguiram estabelecer o padrão para a chamada alfafetoproteína. Há oito anos, cientistas ingleses descobriram que a dosagem no sangue da mãe dessa substância produzida pelo feto estava relacionada com eventuais distúrbios: "Níveis baixos indicam doenças hereditárias", exemplifica Moron. A questão é que esses níveis variam conforme a população e, por isso, o professor paulista levou os últimos três anos investigando a dosagem média de alfafetoproteína nas grávidas brasileiras.
 
"O exame tem uma margem de erro grande, em torno de 18%", esclarece Moron. Mesmo assim, ele o considera válido: " é uma uma pista". Isso porque, embora sejam precisos, os exames invasivos, que podem levar a um aborto, só são indicados nos casos de gravidez de risco — quando existem episódios de doenças genéticas na família ou quando a mãe tem mais de 35 anos. "Mas oito em cada dez crianças com síndrome de Down são filhas de mulheres abaixo dessa faixa etária nos países desenvolvidos", explica Moron. "Lá, a realização de diagnóstico pré-natal das anomalias fetais é realizado rotineiramente em mulheres de risco elevado. As mais jovens, apesar de correrem riscos menores, podem conceber filhos com a síndrome no caso de não serem adequadamente rastreadas através de exames como a alfafetoproteína. "

Outro exame que pode, e deve, ser realizado em grávidas de qualquer idade é a ultrassonografia. Nele, as ondas de ultrassom atravessam a barriga da mãe até o feto: uma vez recaptadas, um computador faz a leitura, criando a imagem do futuro bebê numa tela. Para os leigos, parecem borrões; para os especialistas, diz quase tudo. Mas, nas grandes cidades brasileiras, apenas quatro em cada dez grávidas passam pela ultrassonografia.

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